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terça-feira, 29 de março de 2011

Sobre crianças, bichos e homens


Todos os meninos do bairro possuíam cães, gatos, coelhos, pássaros presos ou peixes escravizados e, claro, adoravam isso. Apenas um garoto tinha a infelicidade de conviver somente com animais humanos, graças a criação de uma mãe hipocondríaca, que se dizia alérgica a pelos, penas, escamas... só não era alérgica - curiosamente - ao consumo destes seres, já o pai era digno de pena, um homem tão grosso que não estimava nem a si.
O pobre Eugênio, filho único, invejava as outras crianças, de fato tinha muitos brinquedos e amiguinhos, mas como todo guri, conservava a teimosia e curiosidade de questionar o porquê de algumas coisas sim e outras não, só, simples; muito embora lhe inventassem sempre histórias para contesta-lo e Eugênio aquietava-se, impotente.
Certo verão descobriram que Eugênio iria ganhar um irmãozinho, posteriormente, algo mais surpreendente ainda, a chegada de um ser na casa! Eugênio ficou eufórico e o chamou de Nestor( que era o nome de um tio seu muito querido, que sempre lhe contava histórias reais e verdades sobre o mundo, os seres e a vida), pois bem, depois dessa chegada as brincadeiras ficaram muito mais divertidas, afinal, não era um brinquedo, uma coisa qualquer, mercadoria, era uma vidinha a qual o menino esforçava-se para manter bem cuidada, alimentava-o, banhava-o e divertiam-se por longos momentos. Até mesmo os outros garotos apareciam só para ver e brincar com Nestor e seu "dono", os meninos pareciam invejá-lo secretamente, Eugênio era o único que tinha aquele ser, tão esperto, carinhoso, manso, era mesmo admirável. Os meninos tentavam aborrecer Nestor, só para ele sair correndo atrás de todos dando-lhes cabeçadas que não doíam, mas faziam cócegas, logo, todos gargalhavam, e Nestor, mais alto que todo mundo, causando mais risos ainda!
O tempo foi passando, a barriga da mãe de Eugênio crescendo e Nestor também, pois além do garoto, seu pai também preocupava-se com sua alimentação.
O pequeno finalmente nasceu e prepararam-lhe uma grande festa de boas vindas. E numa manhã de domingo Eugênio acordou assustado com o grito que ouviu, sem dúvida aquele som era de Nestor, mas ele nunca tinha emitido nada parecido, aos pulos o menino correu da cama em direção ao lamento; no terreno dos fundos da casa, Nestor estava caido no chão com as quatro patas amarradas, havia muito sangue e seu pai desferia golpes violentos de machado na cabeça do bicho.
- Diabo de porco que não morre nunca! ele dizia enquanto concluía enfurecido sua façanha de assassinar um ser impossibilitado de escolha e defesa.
Nestor gritava, chorava e contorcia-se de dor até que num último golpe o homem partiu sua pequena cabeça em duas partes, transformando o amável Nestor, numa massa disforme, vermelha, imóvel. Eugênio então sentiu algo que desconhecia. Naquele momento, com o coração apertado e lágrimas no rosto, soube a diferença entre homens e bichos.
A noite na festa, os homens consumiam o cadáver do porco, bebiam cachaça e falavam trivialidades. Barbárie.
E Eugênio emudeceu por um longo tempo.

Um comentário:

  1. Parabéns pelo texto, continue escrevendo pois acredito no seu potencial de criatividade e de encantamento com as palavras, mesmo nessa crônica, um tanto quanto macabra, mas que retrata o cotidiano de gerações.

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